No dia 3 de dezembro de 2020, na memorável Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro no Rio de Janeiro, tendo a celebração sido presidida pelo Eminentíssimo Senhor Cardeal Dom Orani João Tempesta, Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro e Cardeal Bailío da Ordem.
Afinal, o que é a Ordem de Malta??
Esta matéria abaixo explica um pouco a história desta importante ordem caritativa.
ORDEM DE MALTA: A SOBERANA IRMANDADE DE MONGES-GUERREIROS
De origens que remontam às Cruzadas, a irmandade controla
atualmente a menor nação do planeta. E segue com a missão milenar de ajudar
vítimas de conflitos e desastres em mais de 120 países
CARLO CAUTI
PUBLICADO EM 20/09/2019, ÀS 09H00
PUBLICADO NA
REVISTA AVENTURAS NA HISTÓRIA
Siyah şeytanlar. Era assim – os demônios de preto –
que os soldados otomanos chamavam os cavaleiros da Ordem de Malta, uma
irmandade de monges-guerreiros vestidos de preto e famosos pela habilidade em
batalha (e pela sobrevivência) após um milênio de guerras, intrigas, fugas e
perseguições.
No passado, a Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São
João de Jerusalém, de Rodes e de Malta (esse é o nome oficial da organização)
era formada por clérigos nobres cavaleiros – que antecipariam o atual movimento
internacional da Cruz Vermelha.
Hoje, a ex-potência militar de tradição aristocrática
controla um Estado soberano e sem território, com apenas alguns palácios em
Roma, e segue católica, fiel ao papa. Porém, sua força está nas relações
diplomáticas que a irmandade mantém com mais de 120 países pelo mundo
(católicos ou não), tendo representação inclusive na Organização das Nações
Unidas, como Observadora Permanente. A Ordem de Malta, a mais antiga
instituição humanitária do planeta, tem uma história com diversos capítulos
fascinantes. A começar pelo nome.
Os Cavaleiros
Hospitalários
Seus membros, que hoje são chamados de Cavaleiros de Malta,
surgiram como os Cavaleiros Hospitalários. Depois, se tornaram os Joanitas,
Hierosolimitanos, Rodes e apenas a Religião. Mudanças de nome geradas pelas
peripécias geográficas que a Ordem enfrentou no decorrer dos séculos.
Tudo começou na Alta Idade Média, justamente no tempo em que
surgiam outras ordens monástico-militares. Seu fundador, o monge italiano
Gerardo Sasso, e mercantes da república marinara de Amalfi, na Itália (que
dominava o Mediterrâneo oriental na época), obtiveram do califa do Egito a
autorização para construir um hospital para forasteiros e peregrinos em
Jerusalém, dedicado a São João Batista, o futuro patrono da Ordem.
Beato Gerardo - Fundador da Ordem de Malta
Com o início da Primeira Cruzada (1096-1099), aquela obra de
caridade na Terra Santa passou a atrair cada vez mais adesões entre os
“soldados de Cristo”, que chegavam à região para lutar contra os muçulmanos.
Até que, em 1113, uma declaração oficial do papa Pascoal II autorizava a
criação formal da Ordem Religiosa de São João, em Jerusalém – uma congregação
independente das autoridades eclesiásticas locais que se tornaria o primeiro
exemplo de organização internacional de beneficência e caridade.
“Os membros da Ordem precisavam
fazer voto de pobreza, castidade e obediência, e tinham duas missões: defender
a fé cristã na Terra Santa, contra os muçulmanos, e ajudar os peregrinos
construindo hospitais. Essa segunda era a missão principal. Por isso, ficou
conhecida como a Ordem dos Cavaleiros Hospitalários”, explica o professor
Charles Dalli, historiador da Universidade de Malta.
Como símbolo da nova instituição,
foi escolhida a cruz de oito pontas de Amalfi, que representava as oito
beatitudes evangélicas do “Discurso da Montanha” de Jesus. E como lema, a frase
em latim Tuitio Fidei et Obsequium Pauperum, cuja tradução é “defesa da fé e
serviço aos pobres”.
Logo, o segundo grão-mestre
hospitalário, o cavaleiro francês Raymond du Puy, general do lendário rei de
Jerusalém Godofredo de Bulhão, dividiu a Ordem em três classes: religiosos,
trabalhadores e combatentes – o que espelhava, aliás, as três classes sociais
da Idade Média. “Os Hospitalários começaram a se estruturar, obtendo doações de
europeus ricos, ganhando terras enormes e melhorando suas capacidades de
combate.
Com isso, se espalharam por toda a
Terra Santa, permanecendo por mais de 200 anos nos Reinados Cruzados de
Além-Mar”, diz Emanuel Buttigieg, historiador e professor, também da
Universidade de Malta. Segundo ele, esses monges-guerreiros foram os
protagonistas de épicas batalhas e de brilhantes negociações diplomáticas.
“Criaram o primeiro sistema de saúde pública da história, até para quem não era
cristão.”
Do outro lado do Mar Mediterrâneo,
em Roma, os papas olhavam com atenção para a Ordem, mantendo seus membros
sempre em consideração: ao longo dos séculos, a Igreja concedia isenções e
privilégios à Ordem, incrementando suas riquezas (a prática de captar recursos
entre os reinos cristãos do Ocidente já era levada com habilidade pelos
cavaleiros em toda a Europa).
A Ordem se tornou muito rica e
conseguiu expandir suas atividades por todo o continente, criando uma rede de
representações diplomáticas (chamadas de Comendas), que também administravam
bens e posses. Entretanto, em 1291, a epopeia cruzada terminou. A última
resistência cristã na Terra Santa foi em São João de Acre, onde os Cavaleiros
Hospitalários, juntos dos Templários e dos Teutônicos, lutaram pela última vez
lado a lado contra os muçulmanos. Perdendo a batalha.
O Ocidente recuava e um pequeno
grupo de diabos negros se refugiou na Ilha de Chipre. Tal mudança gerou a
primeira tormenta na instituição: sem a Terra Santa para defender, as ordens
cavalheirescas entraram em crise de identidade, e os monges-guerreiros
Hospitalários tiveram de se reinventar. Com tantas riquezas acumuladas, mas
nenhum objetivo para justificá-las, o risco mais provável era de que a Ordem
fosse suprimida.
Justamente o que aconteceu, de
forma sangrenta, com os Templários, a mais rica entre todas as ordens
religiosas de cavalaria. “Mas, diferentemente dos Hospitalários (que ajudavam
os peregrinos), os Templários tinham apenas uma missão: lutar contra os
islâmicos. Quando os cristãos foram embora da Terra Santa, eles se encontraram
sem um objetivo e com muitas riquezas”, afirma Dalli. Um alvo fácil para reis
com as contas públicas quebradas, como Filipe IV, da França.
Rota para Rodes
A nova ocasião para aventuras
chegou em 1306, quando o genovês Vignolo de' Vignoli propôs à Ordem conquistar
o arquipélago Dodecaneso, ocupado pelos turcos. Os Hospitalários aceitaram e
atacaram a ilha de Rodes. O sucesso da operação gerou um novo objetivo para os
cavaleiros: a defesa da cristandade no mar. Em dois séculos na ilha, a Ordem se
tornou uma potência naval contra os turcos e um grande alívio para a Igreja
Católica.
Cavaleiros da Ordem de Malta em Rodes, no ano de 1310
Crédito: Reprodução do Sitio da Ordem de Malta - Brasil - Rio de Janeiro
“Os cavaleiros se estruturaram na
ilha como uma nação soberana governada pelo grão-mestre, príncipe de Rodes, e
pelo Conselho, que cunhavam moedas, reorganizaram suas próprias Forças Armadas
e mantiveram relações diplomáticas com outras nações. Algo que continuará ao
longo dos séculos seguintes”, diz Buttigieg.
“E, para manter a tradição,
construíram um hospital na ilha. Além disso, voltaram a ter uma missão: lutar
contra os turcos. De força militar terrestre, os cavaleiros, então, criaram uma
grande frota naval, muito bem treinada. E devastaram todo o litoral sul da
Turquia, atrasando muito o avanço islâmico no Mediterrâneo. Isso ajudou os
reinos cristãos da Europa Ocidental.”
A mudança também se deu em termos
de imagem: muitos filhos menores de nobres famílias europeias, que, por
tradição, teriam sido forçados a seguir uma vida monástica para não arruinar o
patrimônio familiar, se tornaram guerreiros sob as insígnias dos Hospitalários.
Isso fez da Ordem uma confraria de nobres europeus, aumentando seu status
social e reconhecimento internacional.
Com todo esse cosmopolitismo, em
1319, a Ordem se organizou na base das regiões de proveniência e dos idiomas
falados por seus cavaleiros. Surgiram assim as línguas, os oito grupos
estruturados em: grão-priorados, baliados e comendas. Cada língua tinha como
chefe um representante (Peleiro) com direito a um cargo no governo – mais um
resultado inédito para os cavaleiros, que se tornaram, assim, a primeira
organização internacional com bases europeias.
Avanço dos turcos
Eis que surge um desafio: a queda
de Constantinopla, em 1453. Um choque para todo o mundo cristão. O Império
Otomano estava pronto para invadir a Europa inteira e viu na ilha de Rodes uma
entrada suculenta, iniciando um ataque sob a liderança do sultão Maomé II, em
1480, com dezenas de milhares de homens e centenas de navios, um dos maiores
cercos jamais realizados. Porém, mesmo em forte desvantagem numérica, os
Cavaleiros Hospitalários resistiram, forçando os turcos a se retirar. Parecia
milagre.
A Europa festejou, mas não enviou
sequer um homem ou navio para ajudar os cavaleiros. Com isso, os otomanos
tentaram nova investida em 1503. Mas fracassaram de novo. Já em 1522, sob a
liderança de Solimão, o Magnífico, e após seis meses de confronto, a situação
se tornou insustentável para a Ordem. Só que os cavaleiros, habilidosos na
diplomacia, conseguiram negociar sua rendição com os turcos, mantendo a honra
das armas e o compromisso de poupar a vida das populações de Rodes. Era o
início do segundo exílio da Ordem.
Seus membros, protegidos pelo
papa Adriano VI, iniciaram a busca de uma nova sede, abrindo uma difícil
negociação com o imperador Carlos V. O soberano do Sagrado Império Romano e do
Império Espanhol estava até disposto a conceder uma ilha aos cavaleiros.
Entretanto, pretendia que o grão-mestre Philippe Villiers de l’Isle-Adam lhe
jurasse fidelidade eterna.
Um ato contrário à tradição de
independência supranacional da Ordem. Parecia que a conversa estava destinada
ao fracasso, no entanto, mais uma vez, a lendária diplomacia dos cavaleiros
conseguiu um acordo. Em 1530, em troca do presente simbólico de um falcão, que
representava a submissão da Ordem ao Império, foi concedida aos cavaleiros a
ilha de Malta. Uma pequena rocha no meio do Mar Mediterrâneo, árida, pobre, mas
estratégica.
Foi lá que os nobres
monges-guerreiros puderam recomeçar. E transformaram a ilha de Malta em sua
fortaleza, aumentaram a potência de sua frota naval, se prepararam para lutar
de novo contra os turcos e assumiram um novo nome: os Cavaleiros de Malta.
Bastião da cristandade
Enquanto isso, o sultão Solimão
estava mobilizando seu grande império para atacar a Roma dos papas. E mais uma
vez os cavaleiros Hospitalários se opuseram às miras dos otomanos. Liderados
pelo 49° grão-mestre, Jean de La Vallette, em maio de 1565, a Ordem enfrentou o
chamado Grande Cerco de Malta: era a chegada de 40 mil homens e de 500 navios
turcos cercando a ilha para lutar contra apenas 7 mil cavaleiros e tropas
auxiliares. A batalha durou até setembro e, contra qualquer previsão, os
Cavaleiros de Malta tiveram uma grande vitória.
“Os turcos ficaram tão irritados
pela obstinação demonstrada pelos cavaleiros que decidiram pregar os
prisioneiros em cruzes de madeira e deixá-las boiando no mar. O grão-mestre La
Vallette respondeu mandando decapitar os prisioneiros turcos e atirar suas
cabeças por canhões contra o acampamento inimigo”, conta Buttigieg.
Castelo de Rodes
A defesa de Malta deu aos reinos
cristãos do Ocidente o tempo de se preparar e, em 1571, ocorreu o confronto
final com os turcos, em Lepanto, na batalha naval que decidiu o destino da
Europa. A frota da Ordem de Malta participou do combate. Mas, antes de as
frotas ocidentais chegarem à costa da Grécia para enfrentar os otomanos, La
Vallete já havia dado sua contribuição à cristandade: o líder militar ordenou
seus espiões infiltrados em Constantinopla a incendiar o arsenal turco,
destruindo boa parte da frota inimiga – e garantindo a vitória dos cristãos.
Graças a esse triunfo militar, o
futuro parecia tranquilo e próspero para a Ordem. A gratidão para La Vallette
foi tamanha que a nova capital de Malta foi chamada de Valletta. O local, além
de se tornar uma poderosa fortaleza, atraiu os mais importantes arquitetos e
artistas da época, que transformaram a cidade na pérola do Mediterrâneo.
Chegada de Napoleão
Até que, em pouco mais de dois
séculos, a calmaria na Ordem de Malta deu lugar a uma nova tormenta: Napoleão
Bonaparte, que conquistou a ilha em junho de 1798, sem disparar um
único tiro. Os cavaleiros tinham como regra não lutar contra os cristãos e não
opuseram resistência, ficando mais uma vez sem pátria, sem exército e
empobrecidos.
Quem os acolheu desta vez foi um
aliado tão inesperado quanto polêmico: o instável czar da Rússia, Paulo I, que
conseguiu se eleger grão-mestre mesmo sem a aprovação do papa. A decisão gerou
estranheza, já que ele não era católico, mas ortodoxo, além de ser casado e ter
filhos. O que explica é que o russo era obcecado pelos ideais românticos da
cavalaria medieval – a ponto de mandar pintar em todos os seus retratos
oficiais uma decoração no estilo maltês e criar um patriarcado ortodoxo da
Ordem exclusivamente dedicado aos nobres russos.
O período na Rússia foi o mais
improvável para os Cavaleiros de Malta. O apoio do czar, entretanto, foi o que
salvou a instituição.
Quando, em 1801, Paulo I foi
assassinado, seu filho Alexandre I renunciou a qualquer prerrogativa sobre a
Ordem, que voltou a ser livre. Até que, em 1834, foi acolhida pelo Vaticano,
que lhe concedeu a soberania sobre alguns edifícios no centro da cidade, como o
Palácio Magistrale, em Via Condotti, e a Vila Magistrale, na colina do
Aventino.
Com isso, a Ordem manteve as
vantagens de um Estado soberano, com ordenamento jurídico próprio e a permissão
de imprimir selos e conceder passaportes, mesmo sem território e fronteira. “E
então os cavaleiros voltaram para suas raízes: uma ordem religiosa, cujo
objetivo é criar hospitais para peregrinos. Os privilégios concedidos pelo papa
foram utilizados para criar uma nova e poderosa força humanitária
internacional”, explica o professor Dalli.
E novos desafios não faltaram para
os trens-hospitais dos cavaleiros, que salvaram centenas de milhares de vítimas
do grande terremoto de Messina, em 1908, das duas guerras mundiais e de tantos
outros conflitos armados e desastres naturais. Hoje, a Ordem de Malta mantém
cerca de 12.500 membros espalhados por todo o planeta, sempre operando em nome
da caridade cristã.
Vila Magistral em Roma, residência do
Grão-Mestre
Palácio da
Ordem no Centro de Roma na Via dei Condotti no ano século XIX
Grão-Mestre em cerimônia de recebimento de Cartas Credenciais de novos
Embaixadores na Vila Magistral
Hugo de Castro Machado
Investido Cavaleiro de Graça Magistral da Soberana Ordem de Malta
Brasão de Armas do Cavaleiro de Graça Magistral Hugo de Castro Machado
Com as Insígnias das Ordens do Santo Sepulcro e Malta
Autoria: David Fernandes